segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Cena # 156 - Istambul, Gule Gule, Dois Mil e Quatro.


Separei-me da F., desejámo-nos:
- Sê feliz! (sem mim)
Mãe há só uma, parece que sim e a minha vale por duas, rainha morta, rainha posta.

A velha Istambul estende-se, dedálea, da ponte de Gálata a Kapali Çarsi e o intrincado de ruelas prolonga-se sob os tetos camomila do Grande Bazar. Aí, meio milhão perde-se, diariamente, em compras, "Deus ama os comerciantes", lê-se em Beyazid: pelaria, kilims e suzanis coloridos, algodões e sedas, pashminas e bindallis bordados a fio de ouro, penhores e algazarra, gemas e olhos azuis, cobres, muitos, lanternas e lamparinas rendilhadas, cerâmica de Çanakkale, esponjas e turcos de massagem, essências... Regateio um esbelto samovar e um narguilé meramente decorativo, vinte milhões e acha pouco, gesticula e grita, é o código da quadrilha.
Entramos na meybane, ao lado do garoto que transporta, à cabeça, o tabuleiro de simits para o almoço. Comida de taberna, guisado de gambas e puré de beringela, a raki diluída em porções homeopáticas e, como a nossa, com igual dormência nos membros inferiores. Canta-se de improviso, já não apetece sair.
Não longe, o Bazar Egípcio e as especiarias dispostas em cones, miniaturas coloridas das trulli, em Alberobello: açafrão, cardamomo, cravo-da-índia, pimentas várias, tâmaras, alperces, ameixas, compotas, mel e chá de Riza, sumagre e ervas medicinais, apregoa-se as virtudes do Padicha, o afrodisíaco ao alcance da reya, comprovado por Murat, pai de cem filhos e Ataturk, pai de todos os turcos. Se a cor me lembra a Marraquexe paradoxalmente monocromática, os cheiros depressa me transportam a Istambul e ao Bazar das especiarias!

Por pouco, sentava-me ao colo. O dolmus ia cheio, percorreu Yeniçeriler e largou-nos em Sultanahmet, frente à Mesquita Azul. Ei-la, imponente, uma cascata de cúpulas adornada por seis minaretes, um ultraje a Meca e à Ulema, a humildade é bonita e a religião não perdoa; no interior, deleito-me com a azulejaria cobalto, celeste e esmeralda de Iznik, pontilhada, aqui e ali, por flores vermelhas enquanto, sob a cúpula gema, as belas janelas venezianas deixam entrar a luz do fim de tarde.
Defronte, a irmã, (Hagia) Sophia, linda, de cor-de-rosa, pois claro. Espreitam-nos mil rabos e o mihrab que indica a Caaba. Na abóboda, excelsa e em topázio, exibem-se medalhões gigantes que bajoujam Alá, inexistem as imagens.
Se existe lugar onde Byzas repousa, será certamente por entre as colunas de Yerabatan, ao som da música clássica e da água que pinga, a intervalos, do teto da cisterna. Servidos de kahve e triângulos doces de pistácio, mata-borrão do excelente café, a minha mãe, enlevada, cristalizou. Paz demasiada para o meu inquieto espírito, debandei, para acabar seminu, de chinelos e pestenar à cintura, nos banhos de Cagalaglu, para apanhar a maior sova da vida! Chamam aquilo, massagem turca...

Da colina, reconhece-se a silhueta do Corno e o Bósforo, porque Deus existe e Zeus transformou a amante numa vaca e assim nasceu o estreito, que sobe até ao Mar Negro. Transponho Bab-I Humayun, a porta que abre aos jardins de Topapki, ao palácio e ao harém de mil concubinas para entretenimento da casa, religiosamente guardadas por eunucos, sem flauta e incapazes de encantar a serpente...

A pedonal Istiklal divide a cidade nova e leva-nos ao hotel, na praça Taksim. A cidade fervilha, dois milhões a subir e descer, restaurantes, livrarias mais o Bazar do Livro, discotecas, ouve-se a Amália enquanto o elétrico "nostálgico" sobe a avenida...  Demoro-me em Galatasaray, rendo-me à espetada de mexilhão frito com frutos secos, no mercado de peixe. Na rua, os alaúdes e os derkabas percutidos disputam o tempo ao teatro de sombras e já o anafado Karajoz saliva o delicioso sumo de romã, da banca ao lado.

Passagem de ano, noctambulámos por Beyoglu sob a nortada do poyraz, três, dois, um, pum, pum, pum, um, dois três, muitos, parece que a tradição se comemora ao tiro, a velha, galgaz, juro, nem a achava capaz de correr a avenida, o joelho endireitou-se-me, é milagre, levanta-te e corre, cinco minutos e já espernegávamos na cama do hotel!
Acordámos para o cruzeiro no Bósforo, embelezado de bosques e dos yalis, as elegantes mansões da askedi. Busco o Tosão, avisto, ao longe, os minaretes do Solimão no céu vermelho do fim de tarde. Josão e os argonautas, esperar-nos-ão, eles, em Eminonu? A noite cai, foi-se o ouro, o carneiro assustou-se aos tiros e ganhou asas, imagino-o em Aries, já lhe vislumbro os cornos retorcidos.

- Feliz 2005, meu filho! - desejou - Vês, de repente tenho milhões na carteira e nem por isso sou mais rica...







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