terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Cena # 2019 - Um Final Menos Feliz em Marraquexe: Deu-lhe uma AVC...


Marraquexe, quarenta e nove graus: a cidade fervia e a Leonor não chegara. Hoje, no 4°: dia (,) claro, estão quarenta e seis: ao sétimo, o senhor descansa: que remédio,


A gente habitua-se a isto:
Junto à medina, na hospitalidade do hotel, Les Jardins de Koutoubia, um paraíso a dois passos da mesquita,
- Acompanho-vos ao quarto duzentos e um: as malas demorarão pouco.,

- O pequeno almoço...
- Onde quiser: no terraço, a qualquer hora mas, querendo, no quarto, ou numa mesa para dois, junto à piscina...

No pátio andaluz, as palmeiras e as lanternas laranjas orlam a piscina. Ao fundo, pende o fanou, majestoso sobre os caldeirões em frente à lareira de azulejaria esmeralda.

Subimos ao segundo piso,
A funcionária lustrava os magníficos azulejos zellij dos degraus. O quarto, espaçoso e luxuoso de paredes altas em tadelakt rosa e mostarda, acolhe. O perfumado azeite de Argan enche o espaço.
Dos moucharabieh em madeira, espreito o bulício da rua.



Acordávamos cedo,
À mesa, o chá de menta servido num arco perfeito, o cremoso iogurte e compotas várias. Explico o significado da kesra. A manteiga, colocada há minutos, derrete. São oito.
Perto da meia noite e mais perto um do outro, subíamos ao terraço para o demorado banho ao luar, na piscina de água tépida, ornamentada de velas. Milhões de estrelas, nenhum desejo: que mais se podia querer? Quase um conto das mil e uma noites...



Só pela manhã, é possível apreciar a vastidão de Jemaa-el-Fna.,
Chamam-nos das roulottes para o sumo de laranja, feito na hora. Poucos circulam, o que torna a praça ainda maior! Os burros e as motas cruzam a praça e procuram achar a estrada ausente, algumas atravessam a praça na diagonal, a prioridade, desconhecida.
Onze. A Marraquexe converge para a praça: aguadeiros de vestes coloridas, camaleões e tratadores de macacos, adivinhadores, tatuadores de hemma, arrancadores de dentes... Ouve-se, a flauta e a percussão das taras, e as tarijas dos encantadores de serpentes, espalhados na multidão...

A clareira assinala o local onde, pelas dezoito, se montam as centenas de cozinhas de rua. O carvão fumega e os bancos corridos de madeira aguardam os primeiros clientes.
Alcançamos o terraço do Café Glacier e o sol vermelho, que desaparece em Koutoubia. Do alto do minarete, o muezzin anuncia ao mundo, Allah Hu Akbar!: é tempo de provar as iguarias!
Jantámos diariamente na Praça e, em Marraquexe, sê como eles: coma-se com a mão direita! (a esquerda usa-se para a higiene). Rendemo-nos à harira e à sopa pucante de caracóis, ao cuscuz e às tajines de galinha com limões, às espetadas de cordeiro e ao peixe, de impecável fritura. Por fim, laranja com canela e pastéis de amêndoa, com o chá de menta (o alcool é proibido na medina) e os gnouas no refrão, por companhia...

A praça, caótica e eletrizante, está ao rubro! Mais dançarinos e acrobatas, engolidores de espadas e de cobras e círculos de gente hipnotizada aos contadores de histórias que, noite após noite, as reinventam e cujo final, em suspense, é deixado para a noite seguinte!



A norte de Jemaa-el-Fna,
A rua Semmarine abre-se aos souks: junto às muralhas, em Debbaghine, os curtidores pisam as peles em casulos coloridos, caixinha de aguarelas, observada do telhado próximo.
Comemos panquecas de rua. Ao longe, os artesãos de Haddadine, que martelam e rendilham o ferro e o cobre. Enchemos o olho às lãs multicolores do souk Serbaghine, regateámos babouchas, a Leonor perdeu-se nas belas gondouras bordadas das kissarias de Smata.

Pausa para o chá gelado e para as pastillas de leite e amêndoa, no Cafe des Epices!,
Do terraço, o caleidoscópio de Rahba Kedima: misturam-se especiarias, elixires e corno de rinoceronte, vendedores de escorpiões e de galinhas, curandeiros de Sihacen: magia negra e charlatães!


Negociámos a caleche. Deleitámos os olhos nos azuis-verdes de Majorelle, na Kasbah e da Mellah,
Desculpa Pessoa (caderno de viagens), Marraquexe entranha-se-me de imediato: sucumbo ao rosa dominante e ao azul cobalto, açafrão e hortelã dos pigmentos, ao perfume das especiarias, ao exotismo das flautas e às tajines da praça!
Estranho a partida, como te entendo Sherazade...


A mala, são três no regresso e deixo roupa: não guardo saudade,
Proponho à Leonor:
- Podíamos experimentar um destes restaurantes recomendados...

Acomodámo-nos. Os bancos corridos ora cadeiras de veludo, uma luz artificial, a comida nem tanto saborosa e sabor sim, a pouco...
A meio, sobrevieram as cólicas, agravadas no café...
- Leonor, vamos embora...

Saí à pressa, lembrei-me da doente:
- Deu-lhe uma AVC...
E eu, sem entender:
- Como Dª Maria, uma AVC?!
- Sim, doutor, uma Alta Vontade de Cagar...

Foi apertar o passo, correr com a Leonor parada lá atrás, a rir,  mãos pregadas aos joelhos... Em vão!
Fiquei-me a cem metros do quarto. E a dois, borrado que a sorte não sorri a todos, da loja de quinquilharias do Ahmed...



           Tout a une fim, même l'enfer.
                           Tahar Ben Jelloun.


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