segunda-feira, 12 de maio de 2014

Cena # 259 - As Noites Brancas de São Petersburgo e os Homens de Negro... (Jornal Público, suplemento Fugas, 26.07.2014)



S. Petersburgo: trezentos anos, cem ilhas e quatrocentas pontes, os canais são o sangue da cidade.
O Transiberiano partia daqui rumo a Vladivostok, oito fusos e todos os comboios pelo fuso de Moscovo, complicado isto dos parafusos; do Báltico ao Pacífico, atravessando  as estepes geladas, muitos, deportados, debandaram a meio.
Cheguei no Flecha, manhã cedo. Em junho, dias do solstício, a cidade não dorme: são os festivais de jazz, a ópera e o ballet Kirov, o jantar que podia ser de manhã, a solyanka de peixe e as natas azedas, a vodka e a galinha picante, as noites, brancas...

As balalaicas e a fácies retesada e sofrida da babushka que esmolava, não esquecem os novecentos dias de Leninegrado: um milhão sucumbiu ao frio, à fome e à Luftwaffe; a batata amontoava-se no Sangue Derramado e tudo o que era consumptível, animal doméstico ou nem tanto, foi partilhado, enfim, o requiem de Chostakovich, Estaline destruiu a cidade, a operação Barbarossa tão só lhe colocou o ponto, a solução final.
Por cá, Salazar Neutral recusa a entrada a centenas de judeus, Treblinka acolhe-os... Lisboa, capital do império, vende de tudo, e a todos, mesmo se contrabandeado; celebra-se o fornecimento de 150 milhões de latas de sardinha aos ingleses, as gentes setubalenses agradecem, os conserveiros rejubilam!
O defeso foi longo e o peixe não procria por decreto, o carapau abunda, a sardinha escasseia... O Ganda foi torpedeado e afundado, muitas das latas contêm apenas água, joga-se à cabra-cega.

Pouco falta, acusam o Gineto. Preciso desse banho, raios partam a Maquineta do hotel: deu o berro, a água cai a fio! Misturo-me com os Morsas que se banham no Golfo da Finlândia e está reprovado, não sou o Baptista Pereira, quase morro enregelado!

A catedral de St. Isaac domina a cidade, os turistas acotovelam-se para admirar as pedras preciosas e subir à cúpula dourada. Saio para a Millionnaya, a rua dos milionários onde, mesmo aí, preferem os euros aos kopaks para pagar os blinis de rua, supostamente recheados de caviar.
The bean king, absinter drinker e o boi a olhar o Palácio de Inverno e a magnitude verde-menta do Hermitage; Matisse e a dança, assisto ao Kirov, no Mariinsky.

A Nevsky impõe o ritmo: animação de rua e circo, cafés e teatros, o bazar imponente e a elegância da arcada Passazh, os canais e os barcos num vaivém constante; e o estilo: barroco, neoclássico, art nouveau, aqui, moderno.
A brisa refrescante do Golfo ameniza o intenso calor. No cruzamento com o canal Griboedova, pescadinha de rabo na boca, os turistas boquiabertos com as cúpulas bulbosas de Spas-na-krovi (Igreja do Sangue Derramado) e os carteiristas fixados no rabo e nos dólares daqueles.
Duzentos e dez, de novo o bloqueio e a placa colocada em quarenta e dois: CUIDADO!, risco iminente de ruir com os bombardeamentos!
Caímos nós, no Café Literário, lanchámos mal e mal lanchámos, pagámos bem; de lá saiu Pushkin, presenteado por d'Anthés que damejava a bela Natalya, Grão-Mestre da Sereníssima Ordem dos Cornudos. Não gostou, o desfecho é conhecido.

Um tiro e basta. Subi com a minha mãe, a escadaria do luxuoso restaurante. Da limusina saíram uns gorilas de negro, a cena repetiu-se meia dúzia de vezes, mais umas kalashnikov para compor o ramalhete.
Olhámos a lista. Ao lado, uma jarra com duas flores azuis: superstição russa, número par de flores, associam, eles, a funerais... Estão certos, não sou o Golden Eye e já vi o filme, deixo o jantar às máfias russas.
A velha lembrou a pomba e o Espírito Santo na cúpula de St. Isaac, ganhou asas e voou as escadas, eu, coxo, passo rápido e apertado, tivesse uma palhinha no cu e não caía!






                                                                                                                                                                               

3 comentários :

Zaira Wardrope disse...

Muito bom. Não estive em S. Petersburgo, mas estive em Moscovo e Minsk, na altura tudo URSS, em Julho de 1986, viagem de finalistas da faculdade. No rescaldo do desastre de Chernobyl, a fominha foi muita. Fotos? Muito controladas pela polícia que estava em todo o lado. Cuidado com os dollars, diziam-nos eles. Havia lojas só para turistas, os russos não entravam. Filas intermináveis de gente para comprar chocolate na rua e era embrulhado em papel de jornal, para compensar a falta da fruta, que estava envenenada. A Praça Vermelha era vedada a transeuntes porque era solo sagrado. Só era permitida a fila para o mausoléu do Lenine. As noivas entregavam o seu ramo no túmulo do soldado desconhecido, ai daquela que não o fizesse, ouvi dizer. A viagem de Moscovo a Minsk foi feita de noite de combóio, com 2 paragens para check-ins pela polícia (não fosse alguém andar a viajar sem autorização...). Visita obrigatória ao Museu Nacional de História da Grande Guerra Patriótica mas a visita à Catedral do Espírito Santo não foi permitida. Mandei um postal para a família que chegou cá duas semanas depois de eu ter regressado.
Enfim, experiência única numa altura em que já por cá já se falava na Glasnot e na Perestroica, mas por lá continuava tudo na mesma.
Gostaria de voltar e desta vez visitar St. Petersburgo. Um dia destes...

Jorge Santos Forreta disse...

OBRIGADO ao 'PÚBLICO': saiu, hoje, no Suplemento 'Fugas'.

Unknown disse...
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