terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Cena # 155 - Feliz Natal.



Fez ontem, dois anos. Caminhámos sobre as águas do Cavesnon, os miúdos, esgotados, seguiram às cavalitas; acordaram no Monte, rebolaram divertidos na cama e, da janela, seguiram o rebanho que pastoreava na outra margem. Recordei, naquele rexio, a noite gelada de vinte e quatro, tinha, então, oito anos e tudo fechado, o boca de sapo parado a espreitar o alaranjado das janelas quadriculadas do pequeno restaurante que nos convidou à ceia de bacalhau.

Aterrámos em segurança, em Sausalito; o Simão adora o avião e não largou os comandos do aparelho. Cruzámos a Golden Gate, nem sombra dos telefones de emergência, ninguém troca uma vida por um salto de cinco segundos, para acabar nas águas gélidas da baía. Passeámos de mão dada no Pier 39, a Leonor pediu café quente, os miúdos choraram o gelado, malucos: têm a quem sair, e tu permites. O Tomás mergulhou com os leões-marinhos, saltou com as focas que deixavam os estrados, o Vasco alapou-se a um enorme coração, dos muitos que preenchem a cidade.

A baía, lembrei-me da Bela Vista! Está ajardinada, as casas pintadas, cresceram-lhe varandas sobre o Sado.
Engraçado, não vejo pobres, de rua ou em casas mal amanhadas. As pessoas passeiam-se, alegres, os velhotes agasalhados de Pai Natal, bengalas multicolores, nunca as vira às cornucópias, a miudagem corre atrás da chicha, famintos e bem nutridos, sobra comida para todos!
Nem de propósito, voltei a jogar à bola, percebo, agora, que nunca joguei grande coisa, aliás, julgava que fazia tudo melhor; desconhecia que o Chico ia morrer, uma estupidez, com uma facada para os lados de Moçambique, deixa lá, Chico, aproveita enquanto cá andas. Não me queixo do joelho, dores só dos amores trocados, claudicação, zero.
Apresso-me no duche, o Vitória está a um passo de limpar a taça, o Jota vai trocar os olhos ao Beckembauer e acabar amarelo, com eles em bico.

Julgava-os com os anjinhos. O meu tio convidou-me para os robalos. O meu irmão insistiu no jantar, tantas vezes adiado, desta, afinal sempre se arranja um buraco, juntei-os todos: mister Hawking chegou primeiro, não fosse ele senhor do tempo e do espaço, o K. do Castelo e o Vincent, com a conca no sítio, Mister Cohen abraçado a Mister Dylan mais o Furacão. A Leonor é a melhor cozinheira do mundo, o cozido, soberbo, esqueci a dieta e o boneco da Michelin, o Tim Mãos de Tesoura derreteu-se na farinheira, os bebes ficaram por minha conta, menos bem mas viu-se o fundo às garrafas e não veio o Hemingway.
Saíram, o Paulo já conhecia toda a gente e o inverso ainda era mais verdade, quis acompanhá-los mas não dava uma para a caixa. Mister Hawking afastou-me delicadamente e sentenciou:
- Para a próxima, rapaz, distas anos-luz...

Grande, grande, o Simão desejava-a e cá a tem, a árvore de Natal perfura o teto  os traquinas de cima acrescentaram-lhe luzes e uma estrela: o Vasco adivinhou o piano, o Tomás intuiu o telescópio.
A nossa casinha encolheu, saímos para a Rua dos Alquimistas. Josefov e os desenhos das crianças nunca existiram,
Pelo sonho é que vamos, escrevia o Zé d'Anicha, mas a Weihnachtsfrieden, essa, houve mesmo, revivi-a e comemorei, aos pulos, sem linha inimiga.

Saí de pijama, eram quatro da tarde. Comprei o jornal e os quadradinhos para a tribo, os Dalton e os Metralhas reformaram-se das bedetecas; numa vinheta, o Sr. Lei batia a sueca com o Homem Aranha e o Lobo Mau, com outra bisca que desconheço. Comentavam, duas pranchas atrás, o euromilhões distribuído por todos e o Tio Patinhas ensimesmado na número um, a Clarabela, a mais bela vaca alguma vez vista.
Entrei na pastelaria, a Catarina não me esperava na flanela com ursinhos, nem a multidão que aguardava as encomendas; não me julgavam combinado com a dúzia que entrou ceroulas e pantufas e até a Luisinha, setenta e oito feitos, alinhou e entrou à corrida, a pretexto do pão para o lanche, com a camisa de dormir sacudida da naftalina!

Os meus filhos são os mais bonitos do mundo, afirmo-o eu e sou insuspeito, são o sonho desejado. Porque aos sonhos (e à vida) pintamo-los da cor que queremos.
Acordei com o Tomás e o Vasco a meu lado, os manhosos introduzem-se à socapa, a cara lambuzada, pelo Simão.
- Olha-me essa porcaria! - zangou-se a Leonor.
- Vês o que fizeste, Simão? - fingi repreendê-lo - Tenho que lavar a cara toda e sabes que mais?!,
- O pior, mesmo, é que eu gosto!

A todos: Feliz Natal!





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