Cenas da Vida Familiar
Jorge dos Santos Forreta. Médico.
quarta-feira, 19 de dezembro de 2018
Cena # 1972 - Bidonville: o Caso da Velha Morta, Atrelada ao Renault Dezasseis
Aos que ficaram para trás e aos que caíram,
A Monsieur Ferreirá e aos que sobreviveram na bidonville.,
Aos que partiram,
Todos eles vencedores.
Porque a História é feita destes heróis: gente (in)vulgar, de carne e osso.
I
Quem conta um conto, acrescenta-lhe sete ou oito:
- Sete mil e quinhentos escudos, já vê, doutor, naquela época...
Sete contos e o "passaporte do coelho", traduzido por graúdos: a salto.
Fugiam do Estado Novo e do velho, autoridade, austeridade, ruralidade, miséria; engajadores, aliciadores de taberna, prometiam o trabalho bem remunerado que aqui escasseava, um e outro. Mundos e fundos, Paris, a cidade-luz, a luz ao fundo do túnel.
O salto, quase dois milhões,
- Gnus e zebras a lançar-se à água, doutor, a Guardia Civil e a Pide...
Crocodilos, sorrateiros, sempre dispostos à dentada. E os pica-chouriços, para a malta escondida na palha.
Um bom negócio: a Europa destruída do pós-guerra e a precisar mais do que uma mão, os gendarmes que fechavam os olhos e a França a vender armas ao ditador, para a guerra ultramarina.
Percebe-se a dureza do salto: só eles partiam, elas ficavam, assegurava-se as remessas.
Salazar escondia os olhos sob as fendas palpebrais, entreabertas.
Madame Ferreirá, ficou, Monsieur José fez-se à lua, boa nova, chegou a Paris e engrossou a bidonville: chegou para a construção, foi chauffeur e coiffeur, sempre um champigny.
Um avec.
II
À altura, morávamos três num barraco, duas portas, uma para entrar outra para sair sem identificação, uma janela; perto, sobrevivia uma família de lusos quaisquer coisas, três gerações num cubículo menos pequeno que o nosso.
Um dia, a velha morreu, os documentos para lá, cá, em Bragança e, sem estes, enterrar... Maneira, havia, o dinheiro tudo compra e tudo arranja, mas...
Mas: o dinheiro mais a Pátria, junto aos "seus". Rumaram a Portugal, a velha enrolada nos cobertores que não sobravam, a passear-se no atrelado ao Renault dezasseis. Uma bomba!
Uns minutos para descansar, acordaram já o sol ia alto, para os meios de Espanha. Sem atrelado, roubado durante a noite, lua nova, como quando cabriolaram a fronteira.
Não se queixaram.
- E quem levou o presente, doutor, também nunca o fez!...
Tudo está bem quando acaba mal. Talvez por isso a Madame Ferreirá prefira o chouriço espanhol, que continua mais barato...
Partilhar esta Cena...
Enviar a mensagem por email
Dê a sua opinião!
Partilhar no Twitter
Partilhar no Facebook
0 comentários :
Enviar um comentário
Mensagem mais recente
Mensagem antiga
Página inicial
Subscrever:
Enviar feedback ( Atom )
Twitter indisponivel por agora!
"Siga-me no Facebook!
RSS
Contact
A tribo
Contador de Visitas
Contacte-me
Mensagens populares
Cena # 259 - As Noites Brancas de São Petersburgo e os Homens de Negro... (Jornal Público, suplemento Fugas, 26.07.2014)
Cena # 2068 - Amor de Pai.
Cena # 568 - A Prisão De Ventre E A Caganeira Que A Prende Em Casa.
Cena # 154 - O Melhor do Mundo.
Cena # 1997 - O Estado Velho. (Publicada na Setúbal Revista, na edição de outubro de 2017)
Cena # 2069 - Ossos do Ofício.
Cena # 2067 - Falsa Partida...
Cena # 1819 - A Casa É Onde Mora O Coração.
Cena # 1179 - Essa Coisa do Património Mundial,
Cena # 2019 - Um Final Menos Feliz em Marraquexe: Deu-lhe uma AVC...
;
0 comentários :
Enviar um comentário