sábado, 22 de dezembro de 2018

Cena # 1975 - Gente Feliz com Pouco. (a publicar na Setúbal Revista, no mês de fevereiro 2019)


À minha mãe, Maria de Jesus.,
Cresceu na antiga Rua do Poço, no coração do bairro de Troino: o trinta e nove era uma mercearia,

As caixas de fruta, empilhadas, escondiam os quartos: um minúsculo, onde dormia aos pés da cama de ferro dos meus avós, mais o guarda-roupa e a espingarda de dois canos, outro, do Agostinho, improvisado na cama de palha que se aplanava diariamente sob um vão de escada, forrado com os posters que pedinchava, por carta, à embaixada americana.
Na pia, o sabão macaco. Escuso por baixo, o sabonete Confiança e o après-rasage Musgo Real que o Agostinho calava, e que a minha mãe surripiava e espalhava pelo pescoço...



Devota, não fosse a minha avó Ermelinda de Jesus, a estaurolatria cobria as paredes da mercearia e afastava o quebranto e o bolor. Ao lado da caixa registadora, um quadro do casamento e o Punto Azul, para a companhia: sucumbiu a minha avó, a café e pão com banha de cor, com o coração apertado à voz do Joselito.


No primeiro morava o Senhor Ricardo Peixinho, Presidente das Festas da Nossa Senhora da Arrábida: para a minha mãe, tinha assento no Conselho de Estado, ao lado do Carmona ou por cima dele e, por ele, a banda percorria Troino, círio às costas, e detinha-se por minutos à porta da mercearia!

A minha mãe, a filha que não tiveram, seguia com a Virgem, na traineira até ao Portinho: trepada a serra, a tradição mandava bater o cu no S. Martinho,
Sorte malvada,


À frente, morava a Tia Anica, mãe da Principelina. Descascava as ervilhas da minha avó e ficava-lhe com a metade. Era só a metade do trabalho: com a minha mãe ao colo, catava o piolho e benzia o olhado...



Os meus avós alvoravam às cinco.,
Escolhidos a fruta e os repolhos, salmouravam as azeitonas. A avó, Ti Palmeloa, ordenava soltura ao Tio Valente, uma carvalhal figura mas um desastre na venda, incapaz da mentirola mais inocente...

Sobrava, aproveitava-se para o licor e nos doces para barrar o papo-seco dos meninos, que nada lhes faltasse.
Gente simples,
O luxo do meu avô: a caça e os coelhos que pendiam da cintura, e se não via um boi, a avó jurava comprados no mercado; o dela: assistir à matinée, de balcão, no Salão Setubalense!



A minha mãe,
Apanhava malhas e, sem sonhos, suspirava pela comunhão, o fato alugado à Graciete e a permanente no salão da Lena: ia linda ainda com a marca dos ferros, mas farta de caracóis e, por isso, obrigada a dormir sentada no almofadão de bordado inglês.
Jejuou e estatelou-se inanimada, no chão da igreja, salva pela fé, nas línguas de gato da Arcádia e nos rebuçados da Fábrica de Santo António.


O Agostinho,
Desdobrava-se nos trocos da caixa para ficar com as moedas de prata presas à mão. A avó controlava as notas.
Mal podia, fugia para a bola, ranhosa de trapos e para a praia, no Cais do Carvão. A avó pagava, em dinheiro e mais em géneros, ao diretor da escola para o amarrar mas o bicho, pulava pelo o quintal do Louzada, não o apanhassem eles a laço,
Chegado, a Ti Palmeloa lambia-lhe as costas, e chegava-lhe, viesse ele salgado do banho nu Sado...



Outros tempos,
A seriedade e a Palavra não eram vãs e, por tal e tal são trinta mil réis, a minha avó quase se suicidou: por morte da mãe, o Veneno, o irmão mais velho, olho azul e bem aberto, comprou a parte dos irmãos, quinze contos a cada, que a tia Merciana e o Zé Marreco lhe pediram para guardar...
Mal o fez, sob a almofada de cetim que saía nos furos da feira e, por norma, à casa. O Agostinho estranhou o dinheiro, escondeu-o melhor...
Pendulava ela no miradouro, quando o dinheiro chegou: o dela era o menos e os outros trinta mais ainda, que não tinha, que vergonha e o que pensariam...


Além do dinheiro,
Trouxera uma mesa antiga de madeira que um advogado, velho macaco, cobiçou., Reperguntou o preço, cheirou a madeira, sacou da navalha e raspou-a, pagou.

Ao dia seguinte, vinha devolvê-la, fora trapaceado: não era de pau-santo...
- Nunca lhe disse que era pau-santo ou de pau-diabo!, Mas espere: o senhor doutor queria enganar-me, fosse de pau-santo e não a vendia por esse preço! - replicou o tio Valente
E quanto ao cheiro,
- Tivesse perguntado e dizia-lhe que era da carrada de melões!




Almocei há dias, com a minha mãe, no Largo da Palmeira,

- Éramos pobres., Remediados, vá., O folhetim da coxa mais a bola de trapos e o pão molhado no azeite Andorinha...,

As coisas que sonhas, não as tivemos, e o que passámos não sonhas,
- Mas nunca ouvi uma discussão e na verdade éramos muito felizes!

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