terça-feira, 27 de novembro de 2018

Cena # 1951 - O Mercado Quinhentista, no Forte de S. Filipe.




                      I


Aos doze caiu da varanda do Paço, aos dezasseis, o pai, S.A.R. D. Manuel, ficou-lhe com a noiva, sorte madrasta; D. João III entusiasmou-se pela ex-cunhada, agora esposa e tia e nasceram filhos e primos, tudo em família.

O Desejado, não desejava mulheres: enfadavam-no..., Queria aventura!,
Seria aconselhado morrer na praia, mas não,
Esgotou-se na caminhada, perdeu o norte e a cabeça no pôr do sol escarlate marroquino, longe do fogo da armada, logo
Rei morto, rei posto e o Rei Ericeira,
O retrato de Dom Sebastião, o único que sobreviveu ao incêndio no Hospital de Todos os Santos: o sebastianismo veio para ficar.

Os empréstimos, os impostos e mais fintas, a fome e a mendicidade, obrigaram à migração de homens e à falta de braços na agricultura com a consequente escassez de cereais: os celeiros e as casas comuns e os filhos de ninguém, abandonados a coberto da noite, ao lado do bilhete.

Veio o Messias e não serviu: Luís Dias para quem ainda o conheceu não esturricado, às mãos da Inquisição,
Ficou o Cardeal com o menino nas mãos: sexagenário, dispôs-se a dar o litro, mas mililitros fossem e não dava um para a caixa...
O resto é história.



                               II


"Herdei-o, comprei-o e conquistei-o!"
O mercantilismo e o lucro atiraram o desprendimento dos bens e das riquezas às urtigas; o dinheiro compra consciências,
Filipe e o português-agente-espanhol Cristóvão de Moura sabem-no bem.

A vila de Setúbal assume a causa do Prior do Crato e resiste, enquanto pode,
Aqui se instalam os governadores do Reino, os procuradores e alguns embaixadores; em pé de guerra, dão à sola, o luso-caramelo Cristóvão fugia a sete pés, e só com eles a bater no cu, escapou à ira popular!,

No dia dezoito de julho, a vila rendia-se ao Duque de Alba; a vinte e dois, a armada do Marquês de Santa Cruz cruzava a Arrábida e o Convento Novo e, vencida a torre do Outão, ancorava no Sado.



                              III


Na verdade é um Forte, o Castelo de S. Filipe para os setubalenses,
Lançada a primeira pedra no ano de mil quinhentos e oitenta e dois, por Filipe II, Primeiro de Portugal, a sua natureza militar é indesmentível, no combate à pirataria
(os ataques eram frequentes, a populaça queixava-se que as gentes vizinhas, e tinham mais queixa dos de Palmela, não lhes acorriam; com a ocupação, os oficiais filipinos acomodavam-se na casa dos setubalenses, sem o seu consentimento...),
Por outro lado, o Forte espreitava a vila...

Como Forte , apresenta uma forma estrelada de seis pontas e outros tantos baluartes e guaritas, fosso e contraescarpa,
A norte, o primo afastado: o castelo de Palmela.



                               IV


Ao tempo dos Felipes,
Na baixa-mar, a língua de areia estende-se do Outão a Tróia, quase se atravessa o rio a pé,

A vila tem sete mil habitantes e quatro freguesias: as de Santa Maria e de S. Julião, e as mais recentes, da Anunciada e de S. Sebastião; vive essencialmente da indústria salineira e da sardinha, salgada ou defumada, louvadas no foral de D. Manuel: já teve melhores dias...

Então, do castelo,
O bairro que se avista a poente é Tróino, já existe desde a Idade Média; sobre o seu sapal acha-se o Convento de Jesus e aí se realiza a Feira de Santiago,
A ribeira (do Livramento) divide a vila, não as gentes: a Porta Nova liga Tróino ao retângulo muralhado e, a nascente, a Porta de S. Sebastião abre-se aos casebres que já ultrapassam a muralha afonsina...
Entre muralhas, as torres e as igrejas de Santa Maria e de S. Julião, a Praça do Sapal e os Paços do Concelho, meia dúzia de casas apalaçadas na malha apertada de casas estritas.



                               V


No interior dos sessenta metros quadrados, a meia dúzia de colchões espalha-se na única divisão,
Guarda-se no baú, que serve de mesa, a cozinha é desmontável: um fogareiro...,
A casa de banho, a bacia e o bacio, se calha, lançado à rua ao grito de "Água vai!", quem te avisa...

Os portugueses importaram a sífilis e exportam a varíola, a peste visita, sem avisar,
Vive-se pouco, trinta, quarenta anos, convive-se muito: festas e romarias, a vida acontece na rua! A casa é abrigo, não intimidade,
Sem faca ou garfo - uma modernidade - o povo come à mão, pão, legumes e peixe, fresco, seco ou salgado, regado a vinho,
Trabalha no que há ou no ofício que aprendeu junto do Mestre: almocreves e mariolas, carregadores do sal e da sardinha, calafates, pescadores e meirinhos, línguas (os intérpretes), atafoneiros, mostardeiros, tripeiros e carniceiros, taberneiros, barbeiros tira-dentes e cirurgiões, saboeiros, cerieiros e imaginários, ataqueiros e bainheiros, sapateiros e borzenigueiros, sirgueiros e alfaiates...,

À época, eles enfiam o gibão e as calças de burel remendados, o barrete de feltro ou o sombreireiro,
Elas envergam saiinho e vasquinha, e um colete justo, com atilho à frente; predominam as cores escuras.
Nas casas nobres, de criadagem farta, concorrem sedas e veludos, adamascados finamente bordados a ouro,
Na moda, as saias rodadas e excêntricas - algumas com armação de madeira! - e os rufos, as golas de pregas que, pela sua generosidade, obrigaram ao alongamento dos cabos dos talheres...

Enfim, manda quem pode,
A autoridade do pai sob a do pároco, a Igreja controla os registos e a informação,
E os pecados: as bruxas, os feiticeiros e os curandeiros de gado, as alcoviteiras e a bigamia, bizarrias contranatura, a sodomia e a masturbação,
A blasfémia, claro. Se inexiste, arranja-se.

Sem castigo: a fornicação, a dois e sem malabarismos!



                               VI


Só dois malucos, que a Leonor não fica atrás, carregam quatro miúdos ao Forte, fora o resto.
Soberbo, o nosso Castelo: a antiga casa do governador, agora pousada, e a delicada azulejaria da magnífica igreja, desmentem-no Forte...

Treparam e pularam escadas, correram e empurraram-se, empataram no número de escoriações e queixas, não se queixaram dos instrumentos de tortura, do samberito (pouco) católico, do empalamento e do garfo do herege, da pêra da angústia,
- Como é que se faz isto do rompe-mãos?,
Mete os olhos nisso e se meteres as mãos verás
A cegonha: nasce um gajo para isto.


Animação de rua garantida,
Saltimbancos e volantins, bailarinas de ancas generosas que encantam, às cordas do alaúde, encantadoras de serpentes, aves de rapina e passarinhos d'água, extintos há quatro séculos,
Artesãos e mercadores de banha da cobra, leitoras da sina e videntes, cartas ciganas e pintura em hemma...


O mundo converge para as ruas e para as tascas, fartas em petiscos: a sopa rica de beldroegas, o porco no espeto, apurado com loureiro, sentado no fardo, enfardámos na sopa caramela e na vinhola quente servida no corno, Olé!

À data,
Jogavam às cartas, à porca e ao curre-curre. à batota. Havia tourada,

E houve: o Simão, quem mais, e o Marcelo pegaram-se e pregaram-na boa, pegámos na tralha e fizemo-nos estrada abaixo.,

Outros tempos,
Quando o mal apertava, os clisteres, as sangrias: das outras e as sanguessugas, encarregavam-se de lhe pôr um fim...


Para o ano há mais. E tem mais: eles não vão.










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