Cenas da Vida Familiar
Jorge dos Santos Forreta. Médico.
sexta-feira, 29 de março de 2019
Cena # 2057 - Setúbal, ao Tempo da Segunda Guerra.
Portugal, anos quarenta. Reza, assim, o Livro de Leitura da 3ª Classe:
- Menino, sabes o que é a Pátria?
Sirenes, apenas as das fábricas do peixe. Escasseiam os bens essenciais, sobram o racionamento e o açambarcamento, a falperra e o mercado negro, miséria e greves, os soit-disants vermelhos e os anarquistas que o ditador teme. Os descarregadores forçam a queda do peixe da canastra, agitam o chapéu de abas largas, as pessoas, ávidas, disputam e agridem-se.
A fome mata. Morre-se de disenteria e de tuberculose, fim da viagem no Hospital da Santa Casa, contíguo ao Convento, próximo de Jesus.
Os anos da guerra são frios, neva. O ciclone de quarenta e um, complica, santos de casa não fazem milagres, nem mesmo o Cerejeira.
Salvam-se os que têm terra, aproveita-se o patim e nasce o couval no canteiro, engordam os volframistas, gananciados no ouro nazi.
Rareiam os automóveis, o racionamento estende-se aos combustíveis. Voltam as carroças à praça, abalam as camionetas da Transportadores, cheias dos que partem para lugar nenhum, Os Belos, Viagens na Maravilhosa Região dos Três Castelos... Recorda-se o bólide do Avilez estacionado no Bocage e os tempos da Belle Époque...
A miudagem assalta as ruas de terra batida, alheada e divertida, joga o pião e o berlinde, um grupo afortunado recreia-se na bola de trapos, vejo lá o Agostinho, esta nem o Idalécio defendia! O Liceu do Bocage é um luxo e poucos o frequentam, uma turma do sexto e sétimo anos e basta. Perto, a Quinta das Palmeiras esconde os namoros fugazes, tudo é controlado...
A vida é feita de coisas simples: os quadradinhos do Diabrete e o xis nove, os soldados de baquelite e os de recortar, os carros de madeira e as bonecas de celuloide, os jogos da Majora e já a Aninhas brinca com o Lego e estuda no Jogo de História e Geografia, o novo método de ensinar por processos luminosos, os folhetins radiofónicos e os discos de setenta e oito e o gramofone dava jeito, a Aninhas tem um, Amália e futebol. Casa-se pela igreja, o éfe é lixado!
Saboreia-se o sorvete da feira, engole-se o pirolito sem marcas nem iões na composição, há Comboio Fantasma e o Poço da Morte, na Popular! Mata-se o bicho nos tonéis cognominados da tasca do João e este chama-se Já Foste, há bilhares no Central e no Palácio Salema e Vitória no Campo Atlético dos Arcos. O xadrez está na moda, joga-se de costas no Nicola, aos Combatentes.
É chique o Violette, o pai da Aninhas, um próspero industrial conserveiro, senta-se lá e no camarote do Cine-Teatro Luiza Todi. Os bailes da Capricho estão à pinha!
O vestuário é simples, semi-calça e semi-casaco, aproveita e reaproveita-se, penteados armados para durar e batons para enganar, as fazendas do Mamede e os bonets do Mendes estão lá para os mais abonados. Tarda a mulher em ampulheta Dior e o homem do Terylene e do Pitralon...
A Europa divide-se, Salazar, camaleónico e funâmbulo, resiste. Humilhação e vergonha: os bancos e os lugares nicht fur juden, as colaboracionistas francesas exibidas, rapadas e (s)em roupa interior, os campos de Treblinka , o refúgio no metro de Maiakovskaia e o ovo de Churchill, a história repete-se, sempre uns mais porcos que outros.
Quarenta e cinco, Bendigamos a Paz e a Vitória!, saúda o ditador, esqueceu o "V" mas não esqueceu o Aristides e a Circular Catorze.
Três anos e o mundo não aprendeu, apartheid e Berlim dividida, as pernas do Zatopek valem menos que as million-dolar legs da Marlene, não há Macaca Velha nem Almeida Bruxo que aguentem!
O terramoto de cinquenta e oito arrasou Troino, mas não as gentes. A guerra acabou, escuta-se as violas do Rosa e do Inácio que já morreram . Seis da manhã, jovens vendedores de pé descalço apregoam: "Filhoses quentinhas!", o burro do Izidoro já cruzou o chafariz. Almoça-se o chicharro do alto, levado a assar no forno da padaria, amanhã, talvez, o coelho, com ele no mato . Neva lá fora, as crianças saem para os bonecos.
O pai da Aninhas é rico, as conservas vendem-se. A menina espera a professora, tem aulas particulares de francês e piano, o dinheiro compra (quase) tudo. O industrial chegou cedo, a Aninhas estreava-se a quatro mãos, com a professora sentada a seu lado.
- A quatro mãos?! Compra-se já outro piano, não quero dessas misérias cá em casa!!
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