Cresci numa casa de esquerda, não é que interesse muito.,
Aos jantares, cedo me familiarizei com progressistas e trabalhistas contra nacionalistas e conservadores, intervencionismo e liberalismo, Keynes contra Friedman, no ringue e em direto, no jornal das oito, vermelhos e verdes, mesmo se Estaline desejava Bogdanov a plantar flores nas estepes siberianas e Trotsky, a milhas, a comer a mulher do amigo que o convidou,
Tão longe de Hitler e da Shoah, que isto é crime e pouco ético, a Internacional e, se calhar, o bombordo que também é de esquerda e o Tio Sam (mais um à mesa) e o Sinatra que ouvíamos com frequência.
Os ismos são curiosos: a arquitetura cubista e proletária de Josefov em contraste com os arranha-céus, sinal inequívoco do imperialismo, em Manhattan: e também as gémeas ruíram, porque tudo, inevitavelmente, se desmorona, muito diferentes da torre da Universidade de Lomonosov, acima dos duzentos metros mas só para facilitar o controlo da assiduidade, ou daqueles que proliferam em Xangai...,
Nem preto nem branco: mais do mesmo, todos cinzentos.
O Henrique é advogado, é meu amigo, devo-lhe favores. Há dias, telefonei-lhe,
- Amigo, comprometeste a lealdade..., Como foste capaz de me trair?!
Contei-lhe a novela, desatámos o nó a rir,
Setúbal, ano sem graça de sessenta: o seu avô, juiz na cidade, homem do Direito e de direita, condenou o meu pai, conforme noticia o "Setubalense" de dezasseis de maio:
"Há de ser posto em praça, para se arrematar ao maior lanço oferecido, o automóvel, marca "Taumus", com a matrícula FB-15-47, de que é proprietário o Dr. Jaime dos Santos Forreta, médico..."
Imagino-o a proferir sentença de sorriso bailado e os impropérios que o meu pai lhe terá dirigido, sem carro e com a minha mãe grávida de mim, de cinco meses...
O meu pai era um puro, vestia a camisola e, justiça lhe seja feita, sempre recusou a notoriedade da campanha de Delgado, deu o corpo ao manifesto e jamais se emporcalhou em tachos.
Com o vinte e cinco de abril, cresceram-lhe dentadura e patilhas e mais parecia um banqueiro suíço,
Sempre ao contrário,
Dava tudo e ficámos sem roulotte, tinha de ir a arranjar e foi mesmo: entregou-a ao partido, reconhecia-a pela matrícula, travestida e repleta de cartazes do PS, a circular na rotunda das Três Marias...
Esquerda e direita, mais de duzentos anos: algo entre a mais velha profissão e a tomada da Bastilha, e que pretendem atual, são dois irmãos que simulam desavença mas que comem comer do mesmo tacho... É Magritte, o cachimbo e a representação, o que mais fazem.
Sempre cético: outro ismo, não há como como escapar, faço deles as palavras, ao lado do monumental mural do MRPP, lá, para os lados da Estação,
Putas ao poder, que os filhos já lá estão!
Tinham razão, não tanta quanto pensavam: a sociedade corrompe, e até o "A", anónimo mas sempre assumido, acabou, menorizado e acocorado num círculo, numa vulgar tecla de computador, um simples arroba encarcerado num qualquer endereço: sinal dos tempos, vitória, sem glória, do Friedman.
Apolítico, não neutral, nem carne nem peixe, não faz o meu género: apartidário, com certeza.,
Há os artistas e os artistas: exijo o espetáculo por profissionais, largo quarenta palhaços e levo a família ao circo!
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