domingo, 6 de maio de 2018

Cena # 1748 - Duzentos e Sessenta.





Agora que as azedas pontilham os campos, sinto mais a tua falta, Paulo,
Lembras-te de as trincarmos, calças rasgadas no bate-cu dos calhaus de Brancanes, da mãe paciente, ai o teu pai, se o teu pai?...,
A Paula, que raio, sempre aplicada, os sumários sublinhados a feltro de várias cores, o piano e o conservatório e tu, o violino babado e com as cordas arrancadas,
A Maria Adelaide a devolver o dinheiro da inscrição e o pai aos gritos, a letra undante que bailava nas três linhas do caderno com as folhas penduradas, escreves música, Paulo?, brincava a professora da primária, os medíocres e a assinatura do velho falsificada, lá apusesses um mais e levavas na mesma,
O pai cria-nos perfeitos...

A carica da praia, o jogo da Glória e o meu mau perder, tinha calos na mão de me roer!, o pai a colecionar Filipas de Lencastre e o barbudo do Pedro Nunes a sair da carteira e, tu, a enfiares as notas do Monopólio na mala do homem da Regisconta,
O gato e o rato com a bê éme do Aguardente e, a propósito, o cavalo, o cavalinho nos sinais do Externato Frei Agostinho da Cruz e a Paula no alcatrão para lá sozinha, deste por ela, ou pela falta dela, em casa!
A miniminiHonda, cinquenta centímetros de mota, não te impediram de ir, nacional abaixo, beijar a Ana ao Algarve...

O Barafusta, as filhoses, a Laranjina C e os mosquitos da feira, as sandes de chouriço preto e as litrosas,
A Adega dos Passarinhos e o dono a insistir para pagares o frasco da mostarda, as tasquinhas e as de Santarém, uns copos a mais escondeste o Molotof nas calças...

A Figueirinha, levo lá os meus filhos e falo-lhes de nós, o Ervilha, sabes que já não está aqui, os barquilhos da Ti Maria e as gorjetas que apanhavas sem maldade e o pai desconfiado de tanta sorte no gelado repetido com a palavra Rajá inscrita no pauzinho,

O Jaguar E, amarelo de jantes raiadas e, nós, fedelhos com os pés descalços a arder do alcatrão, a espreitar-lhe o conta-quilómetros.
Duzentos e sessenta!, a vida passa a correr...

Eras lindo, habitado por muita gente!, Safaste-te à tropa, tinhas um osso a mais  no pé, arranjaram-te dois...,
As azedas no caminho: aos dezasseis, saías noite para polir lentes no outro lado da cidade, há sempre quem esteja pior, tens razão,
Na doença, foste herói, não aguentaria metade!, Mas ao caranguejo crescem-lhe as patas,
Foste morrendo e, só por acaso, faz hoje dezassete anos. Já pouco deglutias: pergunto-me se eras tu,
A mãe insistiu no segundo morango que não comeste, engoliam as lágrimas, divertidos,
Partiste, metade da mãe ficou. Lembro o mar de gente no funeral e a mãe ali, sozinha, numa dignidade que jamais alcançarei, num buraco maior que o teu, com as flores na mão.

Sorriste, quando te prometi que nunca vos deixaria morrer,
- És perfeito e por isso o pai gostava tanto de ti, Escreves bem, facilmente preservas as pessoas e as suas memórias e as envolves, como insetos, em âmbar...

As azedas crescem entre as campas,
Quem sabe, um dia destes, recordamos velhas histórias e trincamos algumas...






 

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