sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Cena # 1954 - A Avenida Luísa Todi. (Publicada na Setúbal Revista, na edição de agosto de 2017)


Subimos e o diabo não esfregou o olho, perto da vista, perto do coração, espraia-se Tróia no Sado,
Não depende do ponto de vista,
- É tão bonito, papá: onde estamos?,


No Forum, ou cinema Luísa Todi, como lhe queiras chamar,
Antes, Teatro D. Amélia, ao lamiré da Gazeta Setubalense,  o edifício da União, qual S. Luís, com frescos e o pano de boca da autoria de João Vaz...

A febre e o delírio no Grande Salão Recreio do Povo, quando o Piteira projetou, pela primeira vez, imagens de Setúbal nos anos dez, os filmes ao som da orquestra acocorada sob a tela, os saquinhos de serapilheira no carnaval e os filmes do Gianni Morandi,

O Casino Setubalense estreado no cinema mudo, sucumbido aos gemidos pornográficos,

Os animatógrafos: chalets-teatros-arruma-a-barraca, um deles no sítio do Banco de Portugal, na Avenida Luísa Todi, antes rua da Praia, iluminada a gás,
A eletricidade deu à luz nos anos trinta, pariu charleston e tango nas disputadas soirées do Club Setubalense,



O café do (senhor) Lapido, salas de cartas e bilhares, depois Pensão e Hotel Esperança, a porta giratória, os chás dançantes e as galettes com açúcar e canela, a barbearia ao lado,

As tertúlias do Arcada, depois Borges & Irmão e já foram os dois,

O glamour do café La Violette que dividia a parede com o Postigo dos Engeitados,

Os hors d'oeuvres do Rocha e o saudoso Naval Setubalense
(o pai era chefe de cozinha e serviu D. Carlos, soube-o em Vila Viçosa)

A bolacha da Piedade e as farturas do Chico Padreca, na feira de Sant'Iago, o circo...



Não para: o Sidónio visita hospitais e dá 1$oo aos sobreviventes da pneumónica, cautelas e calda bordalesa,
Olho por olho,
Nem S. José lhe valeu o populismo: a leva da morte não o esqueceu dias depois,

Greves dos pescadores dos cercos, dos marítimos, dos carregadores de peixe e dos baldeadores de sal, dos caixoteiros, dos cocheiros, dos telégrafos sem fio à vista,
Setúbal, (m)alcunhada a Barcelona Portuguesa, mais a puta que os pariu,


A verdade: falta a farinha, o pão, o azeite e a sardinha,
Moços e rapazes, com os pés em carne viva gretados da salmoura, a imoralidade vampira de muitos industriais e as raparigas desonradas nos escritórios em troca do trabalho na fábrica,
As mulheres exploradas e dão o litro por meio litro de leite, quarenta réis à hora, sob a ameaça do lock-out,

Os soldadores bem pagos, não houvesse lata rota e cravadeiras e a saúde que não tem preço,
Dente por dente,
Sabota-se a maquinaria, há tiros no Violette, vigora a lei da bomba e Alcatraz: a canhoeira Zaire fundeada a meio rio, falta autoridade, sobra o autoritarismo,

Fome e açambarcamento, mercado negro, os assaltos coletivos e as crianças que esmolavam, bexigas doidas, altas horas na rua,

Miséria: mais um orfanato, na Soledade, já antes havia o Asilo das Crianças Desvalidas e a Rodeira, amas de leite e amas-secas,



Abalos: o de 1680 e o de 1755, má onda, nem todos os santos ajudam, nascem barracas-cogumelos, gececondu à sombra das muralhas, e o de 1858, os hiates arrancados ao mar, frente ao Esperança,

O abeto nórdico testemunha a passagem de Hans Christian Andersen pela cidade,
- A pequena sereia dormiu na Quinta dos Bonecos...
- Verdade, papá?, Conta mais histórias...
- Aqui mesmo, a avó esculpiu bonecos de neve, nos anos quarenta...



Foi vermelha porque o bispo incomodava, capital da laranja e do rio, azul: Setúbal tem cor...
Falo-lhes da cidade, da nossa dívida de gratidão com esta comunidade que nos atura e acolhe de braços abertos,

Para o Tomás, o Vasco é o
- Senhor Vasconcelos... - aponta, doutoral - E ali, onde estivemos há pouco, era o cinema Luís António! (Luisa Todi)








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