Cenas da Vida Familiar
Jorge dos Santos Forreta. Médico.
sexta-feira, 20 de julho de 2018
Cena # 1826 - Os Bons Velhos Tempos.
Segunda metade dos anos sessenta,
Morávamos numa vivenda, frente à Shell; a camioneta dos Belos parava à nossa porta, serpeava, Estrada de Lisboa fora, até Cacilhas,
- Lembras-te, Paulo?, Temos um filme com os pais, a atravessar o Tejo, e a ponte em construção, sem tabuleiros...
Deitaram tudo abaixo, o canavial e a olaria, o barbeiro do Rio da Figueira que nos desacertava o cabelo, por sete e quinhentos, e com direito a rebuçado,
- Corte à pajem! - guerreava a mãe,
À tigela, aveludado na litrosa de champô de alperce, mais umas gotas de água-de-colónia,
Pelo não, pelo sim, creme Tokalon, gorduroso para a pele seca, hidratante para a pele gordurosa,
Pra menina e pro menino, os brinquedos do género: as bonecas que a Paula mandava para o hospital, os carrinhos de metal do Bazar Thadeu, que mandávamos para o galheiro,
O berlinde e a carica, o jogo da Glória, o Mikado e o prego,
Quebra-se o galho, e eis a fisga com bocados de câmara de ar,
Galgávamos a serra de Brancanes, eu, em pulgas com a camisola de gola alta que sufocava o pescoço,
Esganados de fome: Ovomaltine e gemadas com vinho do Porto, à altura, à nossa!, ninguém morria,
Diz-me que não morreste, Paulo: guardo as fotografias nove por nove, com margem e sem margem para dúvidas, continuas lá,
- Um dia, vais-te lembrar...
Sempre, Paulo: os rolos Kodak, os slides, os filmes e as minhas fitas, não gostava de perder,
Nem tu, a Schweppes e a bolacha Piedade, os furinhos e os jogos de plástico para enfiar as bolinhas, os matrecos, o Professor Karma e o Poço da Morte, uma fartura, os stands
Lembras-te do NSU e do SM, meio Citroen, meio Maserati?, e o pai,
- Se me saísse o Totobola...
Fazia e acontecia, se e se, cá estivesses, comprávamos a Feira Popular e o Castelo Fantasma, fazíamos aquilo a meia dúzia de tostões, como nos velhos tempos,
- E quem não tem cabeça não paga nada!,
A cabeça é que conta: pagávamos a carapinhada de limão, frente ao Casino Setubalense, com uma moeda, daquelas das caravelas que o pai acumulava no porta-moedas de prata e que não conseguíamos juntar, riscavas o meu primeiro vinil dos Archies, Sugar Sugar, que me importa?, passa o tempo e o mau feitio,
O telefone, com disco e cadeado, os cinco dígitos controlados,
- Cinco números ímpares e a soma dá trinta!, Ganhas um gelado...,
A lata do Ervilha e a lata de barquilhos da Ti Maria, os pés escaldados no areal da Figueirinha para chegar ao gelado de pau da Valenciana, aliviados, por segundos, na sombra dos toldos e barracas, o restaurante de madeira e as gorjetas que desviávamos, enquanto a mãe e as amigas jogavam à canasta,
Nada é impossível,
Se o Totobola já não dá para tudo, recordar é reviver: o amolador e o leiteiro com as vasilhas, o Tio Izidoro a subir a escada e nós montados no burro, a primeira bicicleta, que ganhámos, sim: não há nota, não há nota, no Natal de sessenta e nove, espetado no portão, dois dias e dois pontos na coxa depois, o coice do Tarzan Taborda, não perdia e perdeu para a morte, não calha mas calha a todos, o Solnado, o Zip Zip, o bip bip e o coiote,
Os invernos rigorosos e a nossa lareira a fingir de lareira, incrustada no mármore esmeralda,
A casa da mãe parou quando partiste, perfumada de ameixas e laranjas e os pratos, com motivos ingleses, pendurados nas paredes cor de bronze,
Lembras-te?,
Do avô Valentim, que a diabetes levou a perna e da rapariga que lá aparecia e desaparecia metade da mesada que o pai lhe dava, filha, pois claro,
- Uma amiga...
Está nos genes, não fugimos, nem às reguadas na Academia, ainda assim, melhor do que os sermões do pai, cria-nos doutores Barnard,
Não seguiste, que se foda a puta da Medicina, estás no coração de tanta gente, nas fotografias quadradas, espalhadas na sala,
- Um dia vais-te lembrar...
Enganaste-te,
Os bons não morrem, Paulo: não há dia em que não te lembre.
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