quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Cena # 2000 - O Esquentamento.


O Portinho é uma praia de areia fina e águas paradas, de um verde tão transparente que, deixa, do cimo da serra, perceber-lhe o fundo branco. A vegetação luxuriante da parte baixa da serra contrasta com a nudez dos cumes.
Jantei com o meu pai num restaurante de praia, o murmúrio das ondas que se quebravam, doces, no areal, o reflexo da lua de agosto na água, os barcos, em sombras foscas, amarrados a poucos metros.
Lembrou a faculdade e a Maria José, dona da pensão...

A viagem de comboio foi longa, o meu avô acompanhou-o. Sentado na sua frente e sem intimidade, fingiu o sono e espreitou a paisagem fugindo. Evitaram os taxistas, amontoados à saída da estação, o meu avô confiou ao bedel a escolha do quarto. Este olhou-os, o velho de rosto austero e o imberbe, ingénuo, e concluiu inteligentemente que era escusado conduzi-los à rua da Matemática e a qualquer República. Apontou a vitrina onde muitos anúncios ofereciam quartos, aconselhou o que ficava mais perto.

Em Coimbra, a verdadeira cidade dos estudantes era pequena: a Ferreira Borges e o Nicola, o Moçambique junto à Associação, dois cinemas e os jogos da Briosa no Calhabé, a universidade. De resto, o Choupal, os Penedos, da Saudade e da Meditação, serviam os turistas e os namorados.
Comprou capa e batina, regateada ao Jorge que tinha a lojeca colada à igreja de Santa Cruz; o Jorge, meio gordo e efeminado era um usurário competente, comprava tudo o que fosse vendível a estudante ou futrica.

O Jardim da Manga era uma pastelaria sita na baixa onde, duas ou três vezes por semana, as comissões dos vários cursos, promoviam bailaricos para angariar o pilim.

Apreciava-as todas e constatou que eram diferentes da namorada. Não esquecera a obrigação moral de casar e reconhecia-a exclusiva e discreta, não lhe alimentava ciúmes, mas estava longe e já não a desejava com o ardor de outrora...
Escrevia-lhe menos a desculpar-se no estudo; as outras interessavam-no de momento, desde a dona da pensão, quarentona mas de carnes cuidadas e que se enciumava por cada baile, às jovens com quem dançava e que procuravam namora-lo.

Deixou de ser caloiro estrangeiro, usava, agora, pasta com o grelo de quartanista. Integrou a praxe e as troupes, procurava caloiros distraídos do toque da cabra, para o rapanço. Assistiu às serenatas, as lâmpadas, dos candeeiros em redor, quebradas, para a voz surgir mais límpida na escuridão, ceou, madrugada alta, paios e manjares beirões enquanto discutiam as coxas e as mamas no casamento.


Contudo, na maior parte das noites, passava-as, no quarto, a estudar... Quando a casa se silenciava, dedilhava as paredes e subia ao primeiro andar. A patroa abria-lhe a porta, mal ouvia o ranger dos degraus e enfiava-se na sua cama: o marido só pernoitava ao fim de semana e a fogosa Maria José precisava de se aquecer em sangue jovem...


Aprovado no prático, a oral da última cadeira era uma mera formalidade, o meu pai preparou-se: a dona da pensão deu uns cortes nas costuras e na batina para que não doesse quando lhe arrancassem as roupas.

O padrinho da cerimónia retirou-lhe a pasta e a capa e, nu, os amigos flagelavam-no, agitando as mãos com pastas coloridas e gritando louvores, os retardatários aproveitaram mais umas nalgadas...

O senhor Domingos, dono da pensão, não estranhou a mulher, o abraço apertado  e os beijos de felicitações. A sua pensão tinha uma grande vantagem face às Repúblicas - dizia à boca cheia - onde não se estudava o suficiente e se passava o dia refastelado, recuperando das noites mal passadas com as prostitutas; e afirmava, convicto, era vê-las, a sair para o pequeno-almoço, depois de terem satisfeito o apetite voraz dos estudantes! Ali, não, a esposa possuía a excelente virtude de os tratar como pessoas da família...

Chegara dois dias antes, oito dias para gozar umas merecidas férias, explicou. A verdade: viera tratar-se duma blenorragia, contraída em Miranda do Corvo, onde trabalhava. Desconhecendo-o, contagiou a mulher no fim de semana anterior e o velho, por arrasto... Perdoou ao senhor Domingos a gonorreia involuntária mas não esqueceu a Maria José, que o acusara de ser a fonte do misterioso contágio.
Descobriu, por mero acaso, quando o corno foi às compras e lá se enfiou mais uma vez, o bacio tingido de azul dos comprimidos de azul de metileno, cuja ineficácia o trouxera a casa.

Por esses dias, as refeições eram uma tortura, ele, cabisbaixo esquivando-se aos olhares da amante, ela, angustiada pela partida.

- Doutor, bebe vinho, como de costume?
- Bebo, bebo, senhor Domingos... - e quase se engasgava com a comida.

Espreitava a janela e via-os chegar do hospital, onde apanhavam a penicilina; só depois, saía para a levar.

- Estou cansado dos estudos, vou beber um café... - justificava a saída.
O  senhor Domingos não desconfiou que, todos os dias, só ia ao café quando chegavam, raios o partam mais o álcool, tão difícil fora a cura, a beber vinho a todas as refeições!














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