Não sou adepto das teorias pre-socráticas deterministas, não creio que tudo esteja já previamente determinado, qual fatalismo. Seríamos meras "machina animata" mas, contrariamente, ao modelo e método cartesianos, comandados por alguma força exterior, por um destino já traçado...
Pendo mais para as correntes existencialistas que relevam da responsabilidade do Homem, do livre arbítrio e autodeterminação, conquanto limitados, sem pre-determinismos (há teorias que as pretendem compatibilizar). No fundo, acredito nas palavras de Antonio Machado, "se hace camino al andar".
Mas... (e este "mas" é um infinito de discussão)
Desde há muitos anos que sou médico de duas conhecidas famílias da cidade, parentes entre si. Todos eles, de uma forma ou outra, meus doentes, exceto o António que há muito conhecia e falava mas que nunca aparecera no consultório.
Mas há sempre um dia e esse dia foi numa terça feira. Na segunda seguinte iria ausentar-se, por um período de seis meses, para o Brasil, montara lá um negócio...
- Passei por aqui para ver se está tudo bem comigo.
Uma anamnese curta, nada de relevante...
Continuou,
- Está tudo bem, doutor, isto é, penso que está tudo bem...
Procedo ao exame clínico, observo as conjuntivas descoradas, concordantes com a palidez cutânea
- Amigo António, temos um pequeno problema... Amanhã, sem falta, quero-o na clínica para fazer análises
e, acrescentei,
- Na sexta às doze cá estaremos, de novo. Traga a G. (esposa), não a vejo há séculos!
Solicitei urgência ao laboratório e na sexta, às doze em ponto, lá estava o António e a G. . Arranjei uma desculpa para o António ir ao carro, a despropósito de nada. Segurei na mão da esposa
- O António tem um tumor.
A Mónica entregou-me as análises que, no entretanto, chegaram. O que eram indícios transformaram-se numa quase certeza.
- António, vou escrever uma "cartinha" aos meus colegas da Cirurgia do São Bernardo, preciso de mais alguns exames...
- Doutor - disse - na segunda garanto-lhe que vou para o Brasil, der por onde der, tenho o voo marcado há meses e o meu sócio à espera!
- E eu, António, garanto-lhe que ainda hoje me vai telefonar para nos reencontrarmos no consultório...
- Não sei, ainda tenho que arrumar mais umas malas, mas se der tempo ainda passo para me despedir!
Pensara a tarde toda naquilo e o António tardava em telefonar... Perto das dezanove, o número do António:
- Doutor, precisamos de falar, pode lá dar um pulo?
- Claro, amigo!
O António já me esperava.
- Doutor, afinal isto está pior do que pensávamos!
- Não, António, do que você pensava...
- Já sabe o que tenho? Falou com o Dr. Morales?
- Não falei mas desde terça que sei o que tem.
Mostrei-lhe o que escrevera no portátil
- Está a ver, tumor do intestino...
Estupefato, apenas pediu:
- Doutor, não diga à minha mulher.
- Mas ela já sabe, desde que aqui chegou. E vai apoiá-lo, vamos dar volta a isto!
O António foi operado, pós-operatório sem complicações, agarrou a vida, aguentou-se à quimioterapia, o avião para São Paulo com um lugar vazio. Visitei-o na enfermaria da Cirurgia, onde a minha mulher então trabalhava, contei-lhe a história antes.
- Dá que pensar, disse-me ela.
Comecei por vos dizer, acredito que o caminho se faz caminhando, quanto ao destino não estou para aí virado, mas...
A verdade é que o António me apareceu quando tinha mesmo que ser, no dia limite, e eu, ali, à espera, até podia (podia?) estar de férias...
Eu e o António, falávamos agora de coincidências. Recordei-lhe a história de Samarcanda...
- É uma história milenar, sobre a Morte e o Destino...
Certo dia, o oficial do sultanato, ofegante e desesperado, procura o califa e suplica-lhe:
- Empresta-me um cavalo, devo fugir, de imediato, para Samarcanda!
- Mas, porquê?!
- Senhor, hoje fui ao mercado e vi a Morte a olhar-me fixamente!
- A Morte ??
- Sim, de preto, tenho mesmo de abandonar a cidade! O califa lá cedeu o cavalo e, incrédulo, desceu ao mercado. Por fim, lá encontra, a um canto, a Morte e pergunta:
- Morte, porque assustaste o meu vizir?
- Não, eu é que me assustei, não pensei vê-lo aqui, até tenho encontro marcado com ele mas, amanhã, em Samarcanda...
Passadas algumas semanas, o António já estava praticamente recuperado.
Era outra vez terça feira, estava exausto, desliguei o telemóvel, almocei qualquer coisa no Jumbo e entrei no cinema. Na altura passava "Quem quer ser bilionário?", uma história sobre o acaso e o amor perdido...
Entrei, fui o primeiro a entrar e, pouco depois, a sala escureceu. À saída, uma dúzia de pessoas, entre os quais, o António com a esposa!
Abraçámo-nos, o António comovido.
- Doutor, viu?, Uma história bem bonita, É o destino!
E eu que não acreditava:
- É isso o destino, António, É o destino...
Partilhar esta Cena...
1 comentários :
É isso a vida ou o destino, prepara-nos destas partidas.Que bom para o Antonio que o chamamento chegou na altura certa.É sem duvida alguma uma felicidade conjunta medico e doente,ultrapassar momentos tão dificeis.Também eu fico feliz pelo Anttonio.E em situações desta natureza, deveriamos todos dar graças a Deus, por nos assistir com a sua GRANDEZA,e tentando ser feliz todos os dias da nossa vida.
Mas,que me perdoe o Dr.,nada é tão linear e mesmo em circunstâncias identicas,as respostas são bem diversas.
Porque há pessoas que não sabem lidar com a dor,com o facto de serem pessoas diferentes,com a realidade de conhecer a morte mais de perto.
O que eventualmente os poderia fazer felizes,transporta-os para a revolta,para a agressão verbal e psicologica, principalmente com aqueles que mais ama,destruindo a sua vivência,e de todos que o rodeiam.
Quem não gosta mais de si,nao pode gostar do proximo.
Será que temos tratamento para situações desta natureza?
Ou será que o tumor que extraimos dum qualquer sitio,se alojou no coração?
O Dr.me dirá. Ou então é mesmo o destino!...
Enviar um comentário